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sexta-feira, agosto 29, 2003
O cidadão é roubado e ainda passa por ignorante
O Bloguitica Nacional , o Cidadão Livre e o Mar Salgado discutem cidadania. Eis a minha contribuição para a questão.
1. Os Blogs acima citados estão tentar resolver um problema que foi criado por pessoas que seguiram uma linha de raciocínio que foi dar à discussão citada acima;
2. Alguém no passado teve a ideia brilhante de retirar recursos e poderes aos cidadãos e de os concentrar numa única autoridade central, o estado;
3. A ideia parecia brilhante. Pensavam os seus promotores que as elites esclarecidas saberiam gerir muito melhor esse dinheiro que os próprios cidadãos;
4. Ora, esta ideia tem dois problemas;
5. Em primeiro lugar, as elites políticas zelam pelos seus interesses e usam o dinheiro público para benefício próprio;
6. Em segundo lugar, as elites políticas não têm os conhecimentos concretos nem a inteligência necessária para gerir uma sociedade complexa. Ninguém tem. Uma sociedade complexa só é possível se a gestão for descentralizada.
7. Os conhecimentos concretos necessários para gerir uma sociedade complexa encontram-se dispersos por toda a sociedade;
8. Para resolver os dois problemas acima, alguém se lembrou da democracia;
9. A democracia, tal como ela é maioritariamente concebida, é o sistema em que os cidadãos são convidados pelas elites a escolher a facção das elites que deve gerir o dinheiro dos próprios cidadãos. Estúpido, não é?
10. Mas esta ideia também tem os seus problemas;
11. Um deles é o tal problema da cidadania informada;
12. Viveríamos no melhor dos mundos se os cidadãos estivessem bem informados;
13. Mas o cidadão informado é aquele que consegue ter opiniões fundamentadas sobre os assuntos públicos. E como o estado foi ganhando cada vez mais obrigações, o cidadão informado tem que ter opiniões fundamentadas sobre saúde, defesa, ensino, florestas, agricultura, economia, indústria, pescas, relações internacionais etc, etc …
14. O cidadão informado têm ainda que avaliar o carácter e a competência de políticos que sabem muito mais sobre si próprios do que o cidadão poderá alguma vez saber. Não é por isso estranho que os políticos utilizem esta assimetria de informação para iludir o cidadão.
15 – O cidadão super-informado que tudo sabe avaliar não existe nem nunca existirá. Uma sociedade complexa vive da especialização, da divisão do trabalho. Mas a cidadania é um empreendimento em que a divisão do trabalho possível é limitada porque todos os cidadãos têm que desempenhar o mesmo papel. Todos têm que avaliar a informação disponível e votar no candidato certo.
16 – Nenhum eleitor poderá alguma vez dominar todas as matérias necessárias para votar bem. Só para dar um exemplo, quantos eleitores percebem o que está em causa na questão do deficit? Nem os especialistas percebem … E a questão do deficit é uma das milhentas questões que têm que ser avaliadas;
17 – Mas o problema principal nem é esse.
18 – O problema principal é que os conhecimentos dispersos por toda a população são censurados nas urnas e são convertidos num programa eleitoral.
19 – Ou seja, mesmo num país de supercidadãos, cada cidadãos teria informações privilegiadas sobre a sua própria vida, sobre a vida dos que lhe são próximos e sobre os recursos existentes à sua volta. Os conhecimentos dispersos por todos os cidadãos teriam que ser reduzidos a um programa eleitoral. Não há outra alternativa.
20 – Mas mesmo que a cidadania informada fosse possível e mesmo que não existisse censura informativa, a utopia da cidadania informada nunca seria atingida. Isto porque este é um problema de acção colectiva. Como a cidadania informada tem custos privados e benefícios públicos, cada individuo ganha com a cidadania dos outros mas perde com a própria. Perde com a própria porque a cidadania activa requer tempo e dedicação que a maior parte das pessoas prefere aplicar noutras actividades mais compensadoras. Por isso poucos cidadãos têm reais incentivos para desempenhar uma cidadania informada.
21 – Todos estes problemas foram causados por um pecado original: a atribuição ao estado de competências que seriam muito melhor desempenhadas pelos próprios cidadãos.
22 – Os cidadãos não estão informados, nem podem estar, sobre todos os problemas da gestão pública. Mas estão muito bem informados sobre as suas próprias necessidades e sobre os recursos que os rodeiam. Sabem também estabelecer relações com os que lhes são próximos para encontrar melhores formas de utilizar os recursos disponíveis.
23 – Se assim é, porquê retirar recursos e competências a quem sabe o que fazer com esses recursos? Porquê atribuir esses recursos e essas competências a um estado central que não dispõe da informação dispersa por toda a sociedade? Porquê exigir que um cidadão saiba tudo sobre todos os assuntos, quando os cidadãos são bons é em saber tudo sobre si próprios?
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